Histórias de Moradores de Taubaté

Esta página em parceria com o Museu da Pessoa é dedicada a compartilhar histórias e depoimentos dos Moradores.

História do Morador: Jesse Antonio do Nascimento
Local: São Paulo
Publicado em: 11/03/2004

História: A vida de José Indiani


Sinopse:

Infância e juventude em Quiririm, distrito de Taubaté. Descrição dos negócios do avô e do pai. Central do Brasil. Fábrica de cordas e olaria. Construção do sobrado da Família Indiani. Taubaté nos anos 40 e 50. Reflexos da Segunda Guerra. Casamento. Filhos e netos. Relações e cotidiano familiares. Atividades atuais.

História

IDENTIFICAÇÃO
Eu me chamo José Indiani. Nasci no distrito de Quiririm, no dia 13 de janeiro de 1931, no sobrado que é hoje o Museu da Imigração Italiana.

FAMÍLIA
Meu pai chamava-se Luiz Caetano Indiani e minha mãe Adélia Salari Indiani. Meus avós chamavam-se, paterno, Galdêncio Indiani e Blandina Faraboli Indiani, e maternos, Joseph Salari e Ana Maria Benasi. Meus avós eram italianos da província da região da Lombardia, do Norte da Itália, da província de Cremona, e de lá eles embarcaram como imigrantes. Desembarcaram no porto de Santos no dia 15 de outubro de 1892. De lá subiram pra São Paulo, lá na hospedaria, e da hospedaria com destino ao Vale do Paraíba. Eles desembarcaram aqui em Taubaté, de Taubaté foram pra Fazenda do Quilombo, chamada também de Fazenda do Barreiro. Posteriormente - isso foi em 92, 1892 - depois, em 94, se estabeleceram definitivamente em Quiririm. Eles já não foram das primeiras levas [de imigrantes], porque eles chegaram em 1892. Em 1890, e até 89, já tinha chegado em São Paulo os imigrantes com destino pro Vale do Paraíba. Meus pais vieram de lá, da Itália, porque meu pai chegou com seis anos, junto com meu avô. Eram seis filhos: cinco vieram com meu avô e o mais velho já estava casado e ficou lá porque ele queria ingressar nos Carabineri - na polícia italiana. Mas não sei o que aconteceu, não deu certo, aí ele chegou seis meses depois. Veio por conta própria, desembarcou, fez o mesmo trajeto e foi pra fazenda se ajuntar com os pais. Então eram seis irmãos. Minha mãe já é outra história, muito complicada. Eles fizeram a vida aqui, meu pai, meu avô, minha avó, e quando foi já no século XX meu pai voltou pra Itália pra passear - isso foi em 1919, porque já tinha acabado a Primeira Guerra Mundial. Então ele já achou diferente, porque ele já estava com 27, 26, 27 [anos] - porque ele nasceu em 86, 1886. E voltou [para o Brasil] novamente, trabalhou mais um pouco, e em 1905 ele foi novamente pra lá, voltou. Em 1929 começa a história, porque aí ele foi, namorou, noivou e casou-se com a minha mãe no dia 5 de fevereiro 1930. Casou lá na Itália. Ela era de Calvatoni - é a mesma coisa que Quiririm - Taubaté: é um lugarzinho pequeno que por enquanto nem está no mapa, que eu tenho o mapa da Itália e não está no mapa, e pertence a Cremona. Agora Cremona já [é] uma cidade bem atualizada. Então ele já conhecia, mas quando ele conheceu, porque aí é um contraste, meu pai - eu estou aqui contando a história porque meu pai se casou muito tarde, com 44 anos, caminho pra 45, minha mãe tinha 27, e minha mãe sempre foi obediente aos meus pais, aos meus avós, aliás. Ela até falou assim: “Vocês não querem que eu case pra ir embora pro Brasil, eu não caso com ele”. Ele disse: “Não, você vai fazer sua vida, você vai se casar e você vai pra lá”. E foi o que aconteceu. Meu pai ficou lá oito meses lá, mas acertou tudo, porque meu avô já era conhecido da família Indiani lá, os Salari e os Indiani, então já era conhecido. Eu acredito que meu pai estava esperando amadurecer mais um pouco pra depois ele - porque ele já estava passando da idade, pode-se dizer, eu já fiz a conta, porque o meu pai, se tivesse casado na idade que eu casei, acho que eu não estava mais aqui contando história, eu devia estar com 91 anos, por aí. Então, casaram em 5 de fevereiro de 1930. Já vieram pro Brasil. Eu até tenho o convite original, eu coloquei no museu, porque eu sou enterrado lá dentro do museu lá, e eu não abandono aquilo. Só tiveram um filho: eu. Sabe por quê? É que eu não contei, e aí é que começa a história: porque eles tiveram só eu, pra ser mais fácil pra voltar. Porque meu pai encheu minha mãe de conversa, que ele ia vender tudo que ele tinha e depois ele voltaria pra lá. E aí eu nasci em 31, 13 de janeiro de 31, e passou um ano, dois - e minha mãe - , três... E eu já, desde de pequeninho, com três anos, eu já, eu lembro do que acontecia, então minha mãe sempre, não era assim aquela coisa, mas sempre, né... Minha mãe levou uma vida sofrida, sofrida, foi sofrida demais. Outra: lá tinha três jornais que chegavam no sobrado, um era o Diário Oficial, porque minha prima era professora, outro era a Folha de São Paulo e o outro era o Fanfula - deve ter por algum museu em São Paulo, deve ter. Através do jornal Fanfula - era um jornal que circula na Itália, mas trazia todas a notícias da Europa inteira - , então já estava começando a cheirar a Segunda Guerra Mundial. Meu pai era uma pessoa vivida, uma pessoa que andava muito, ele trabalhava com banco, ele ia pra São Paulo, ia pro Rio, nós tínhamos fábrica de corda, então ele era uma pessoa experiente da vida, ele sabia de tudo. Ele sabia deixar o céu pra ir pro inferno, ele ia contentar minha mãe, mas iam correr risco de vida. Porque depois que a Itália se associou com a Alemanha, fizeram pacto ali do Eixo, acabou, não teve mais jeito. E quanto mais foi passando os anos 34, 35 a coisa foi piorando, e eles lá escreviam pra gente que a coisa estava ruim, estava feio o negócio. Tinha gente saindo, vindo embora, saindo da Itália, porque estava feio, o negócio estava piorando. E quando foi final de setembro de 39 estourou a Segunda Guerra. Então um tio meu, casado com a irmã da minha mãe, morreu nos frontes da Rússia, nunca mais acharam o corpo, morreu congelado - foi uma tristeza, contar tudo. As tropas alemãs, italianas quando invadiram - porque praticamente a Itália foi invadida, quem passou o domínio, então tudo isso ajuntou tudo. Então não adiantou nada eles terem eu só pra ser mais fácil voltar, porque não conseguiram nunca.

SEGUNDA GUERRA
A Segunda Guerra, eu já era adolescente, foi uma calamidade. Meu pai não podia sair mais, que nós trabalhávamos com uma juta - Companhia Fabril de Juta - , eram todos amigos da gente, Félix Guisard, aqui da CTI [Companhia Taubaté Industrial], era gente aqui de posse. Então meu pai precisou ir na polícia, aqui em Taubaté, aqui na delegacia e tirar um salvo-conduto, fotografia. Meu pai adorava uma caçada, que podia caçar aquela época porque não tinha problema. Ele ficou em risco, confiscaram a espingarda, denunciaram o nome da cachorra perdigueiro que nós tínhamos, não se podia falar mais o nosso italiano dentro do sobrado, porque só a língua italiana era o dialeto, mas era a língua italiana. Então a gente era assim controlado, não podia, de jeito nenhum, sair fora daquilo, porque tinha quem entregasse a gente. A gente era tachado como quinta coluna: o Eixo era Japão, Alemanha e Itália, o Pacto. E quem denunciava? Tinha portugueses, porque Portugal era neutro, neutro na guerra, então achavam que eles podiam ser prejudicados. Então não era fácil, foi um momento difícil, difícil. Apareceu, eu acredito, que umas dez ou doze famílias japonesas procurando abrigo no Quiririm e lá, por sorte, tinha um senhor, o senhor Joaquim Mendes Castilho - foi uma grande figura, um português de bem - então deu abrigo pra esses japoneses. E eles saíam, corriam, eram tocados fora - eu não sei se vocês sabem, em Pindamonhangaba houve um campo de concentração. Vocês não sabem disso aí, então, nós sabemos disso aí. Mas tudo acabou, graças a Deus acabou. Os brasileiros foram deixar suas vidas à toa lá. A minha mãe chorava e dizia assim: “O italiano imigrou pra aqui pra dias melhores e os filhos vão combater contra os irmãos na Itália”. Foi o que aconteceu: brasileiros deixaram suas vidas lá, descendentes de italiano - porque vieram aqui, eram brasileiros. Era uma época difícil.

CIDADES
Quiririm Praticamente Quiririm, eu não achava que era cidade na minha época, era roça, era uma roça, porque a gente saía pro mato procurar fruta, que era uma abundância de frutas. Lá no sobrado, principalmente, nós tínhamos uma quantidade enorme, trazia os amigos pra subir nos pés de laranja, era pêra, era jaboticaba, era laranja, era banana, era pêssego: tinha tudo.

FAMÍLIA
No sobrado... É o seguinte, pra gente começar, vamos pôr a história certinha no lugar. Então eu tenho que começar pelos velhos, pelos meus avós. É o seguinte: eles montaram uma olaria, porque todos os lotes que foram vendidos no Quiririm - o coronel Marcondes de Matos era sobrinho do doutor Francisco Palio de Toledo, então esse doutor Francisco Palio de Toledo era uma pessoa sentada no dinheiro. O terreno pegava das barrancas do Paraíba e ia até no mar. Então ele disse pro sobrinho dele, Benedito Marcondes, o coronel - coronel era comprado, ele não era coronel coisa nenhuma, era coisa comprada - . então ele falou assim: “Eu te dou metade do que eu tenho, mas tira aquela italianada de lá porque lá eles não vão ter futuro nenhum, eles vão catar lata”, como dizia o ditado. Aí tiraram eles de lá, veio engenheiro do governo e abriram estradas e tudo, tiraram eles de lá. Meu avô chegou dois anos depois e já estavam começando a dividir as terras; ele pegou uma parte alta. Aí, dividiram os lotes, as terras, tudo bem, meu avô preferiu uma parte alta ali, uns três, quatro alqueires de terra e montou uma olaria. Mas quando ele veio pro Quiririm, saiu da fazenda, meu pai dizia: “Em 94 nós nos estabelecemos definitivamente no Quiririm”. Então ficaram lá resto de 92, 93, 94. Por que ficaram lá todo esse tempo? Porque no momento que eles desembarcaram em São Paulo - e no momento estavam sendo contratados - eles estavam assumindo a dívida da viagem, e seria pago com trabalho. Agora, funcionava uma caderneta - que eu guardo uma até hoje de lembrança - essa bendita caderneta de venda, como chamava na roça. Era venda, não era armazém, venda, e ali o que você produzia na lavoura era anotado, o que você consumia também era anotado. Quando chegava no fim do ano você não via dinheiro, meu avô disse que não via dinheiro, meu pai também. Aí então você ia avaliar o que você produziu e o que você gastou, mas sempre era mais que você gastava do que você produzia, eles eram lerdos, queriam segurar o caboclo ali de qualquer maneira. E foi assim. Por isso que o homem falou que tinha que tirar eles de lá, ficar escravo pro resto da vida, que acabou a escravatura negra e tinha começado a branca. Bem, meu avô se estabeleceu lá - a Central do Brasil passava ali desde 1876, mas não tinha plataforma de embarque, estação de embarque, não tinha nada. Essa é Quiririm. Os diretores da Central do Brasil mandaram um emissário, gente ali, e puseram... como no Quiririm: não era só quem ia cultivar, a cidade estava começando a formar, então tinha quem fabricasse tijolos. Então tinha dez olarias - tive a felicidade de conhecer quatro dessas olarias, naquela época - , então pôs na concorrência quem ia fornecer os tijolos mais em conta pra Central. E foi a felicidade do meu avô, porque do sobrado ali na estação é trezentos metros mais ou menos, quatrocentos metros, meu avô ganhou a concorrência e aí ele começou. E ele, os primeiros tijolos que ele fez... Em italiano, primeiro vem o sobrenome depois o nome, então tem os tijolos lá IG: Indiani Galvenci. Depois ele trocou para EFCB: Estrada de Ferro Central do Brasil. E foi que eles levantaram. Aí formaram essa chácara enorme, tinha 1600 pés de laranja-pêra, e essa laranja era colhida e vendida, e iam pra Inglaterra, embarcar no porto de Santos, ia embora pra lá. Tinham montado a fábrica de corda... Todos trabalhavam unidos, as moças também. Meu avô já tinha a fábrica de cordas na Itália. Lá eles não estavam tão mal assim de vida, estavam até mais ou menos. Depois começaram com gado também, então eles estavam bem, já estavam bem. Mas aí o tio Basílio com a tia Anunciata, que casaram lá - essa tia Anunciata faleceu aqui em Taubaté, ela é mãe de todos os escolásticos que tem aqui em Taubaté. Então o tio Basílio com a tia Anunciata tiveram sete filhos, então aí começaram a casar e foram saindo, saindo, então foi diminuindo depois a família lá. Teve três casamentos no sobrado. No quarto em que eu dormia foram realizados três casamentos. Você vê que tempo bom, fazia casamento em casa. Eles começaram lá por 1903 ou 4, porque é o seguinte, a minha avó, o senhor dela era o sobrado, queria demais que o meu avô fizesse o sobrado. Com a olaria, cada vez que eles enchiam o forno, tiravam - separavam - um pouco de tijolos pra fazer o bendito sobrado, e quando foi em 96 já tinha aquela pilha de tijolo, mas os tijolos de antigamente eram enormes, eles mediam 32 por 12 de altura, é um despropósito. Como eram produtos dele, eles não tinham miséria: abriram um alicerce - meu avô achou que aqueles montes de tijolos davam pra fazer - abriram um alicerce com dois metros e meio, e são tijolos duplos assim, uma camada, depois uma inversa e, olha, veja bem, tudo assentado no barro, não gastaram um centavo em ferro, em cimento, areia eles tinham e o barro também, eles tinham ali a terra vermelha. Aí levantaram, quando saíram fora da terra, adeus tijolos, já tinha acabado os tijolos. Então foi uma coisa, uma frustração, frustração, os tijolos que ele pensava que dava pra erguer o que eles queriam foi tudo no alicerce. Aí: “Vamos trabalhar pra construir mais”, mas eles precisavam viver também. Aí deu uma maré danada: seis meses consecutivos de chuva, sem sol, não podiam fazer nada, seis meses. A família morava num rancho, onde hoje os Gadioli têm o restaurante. Tiveram que desmanchar o alojamento da criançada pra poder vender o tijolo, porque não tinha dinheiro mais. Até que o tempo melhorou e eles continuaram. Terminaram em abril de 1903, o bendito sobrado... Foram sete anos; está lá: “Aprile de 1903”. Aí minha avó ficou satisfeita. Muita coisa aconteceu nesse sobrado, muita coisa. Ele ficou com tijolos a vista e só com aquelas telhas comuns em cima, caindo assim a pingadeira, e quando foi lá por 1911, 12, por aí, ele recebeu o acabamento, o reboque. E não era veneziana, era janela maciça, tudo maciça, imagina. E quando foi em 1938 mais ou menos, 39, tiraram as janelas maciças e botaram venezianas. E ele está lá até hoje. Hoje é o museu, Museu da Imigração. Devo isso ao prefeito Bernardo Ortiz. Minha casa, onde nasci, minha casa é museu hoje em dia, eu trabalho lá a hora que eu quero, faço o que eu quero lá dentro, tenho liberdade.

COMÉRCIO
A fábrica de corda começou logo que eles se estabeleceram. Meu avô já tinha as duas coisas, a olaria e a fábrica de corda, e depois o gado. A corda eles fabricavam e vendiam pra Minas Gerais, era o cordel de barrigueira, pra fazer a barrigueira do animal, que era muito usada naquela época. Ia pra Passa Quatro, Belo Horizonte, Formiga, Curvelo, Itajubá e São Lourenço, todos esses lugares assim, de roça, usavam muito aquilo. E a corda também ia pra Porto Alegre. Lá tinha uma firma - chamava-se Lemos & Lemos. E aquilo dava dinheiro. Foram, trabalhavam que nem os italianos dizem, “que nem besta”, desde manhã cedo até à noite, era aquilo, era trabalhar, o imigrante - não só da minha família, o imigrante - veio aqui pra trabalhar, ele não queria saber de coisa, era trabalhar. Pra mim, levantava a moral dele, deixaram a pátria mãe pra vir num lugar duvidoso e tudo que prometeram não foi cumprido, então eles tinham que trabalhar. Então a coisa não era fácil.

EDUCAÇÃO
Em Quiririm tinha escola, Grupo Escolar de Quiririm. Como eu era filho único - agora vou contar uma coisa contra mim, que arrependimento que eu fiz na minha vida, viu, que arrependimento -, pois é, único filho minha mãe, meu pai fazia de tudo pra eu estudar, mas saí, não quis mais. A minha vida era no campo, não queria saber de estudo de jeito nenhum. Os meus filhos já obriguei todos eles: “Não, vocês vão estudar porque não vão bancar o asno do seu pai”. Graças a Deus me defendi. Daí eu voltei, não quis estudar mais - isso foi em 44 - eu voltei e fui pra fábrica, aí eu estava no meio das árvores, no meio do campo, no meio dos bichos que eu sempre adorei. Quando foi em 1º de agosto de 1950 fui convocado pro Exército, aí fui pra Lorena.

JUVENTUDE
Servi em Lorena. Aí foi uma pancada pro meu pai, porque só estava meu pai e meu tio lá tocando a fábrica e os empregados que pegavam de fora. Mas empregado é empregado, é fogo, porque quando a pessoa manda o pedido daquela corda tinha que ser feito daquela corda, era dessa grossura assim, era três milímetros, se a pessoa colocasse mais de uma corda, ele não aceitava o pedido, você perdia o pedido. Então o meu pai era o cabeça dali, ou eu, ou então os meus primos que trabalhavam comigo. Aí quando foi final de 52, quando foi... Aliás, voltando um pouquinho, foi em 45, 1945, chegou um primo meu aqui de Taubaté e falou assim pro pai dele e pro meu pai: “Olha, vou dar uma notícia pra vocês: a Central do Brasil vai deixar de passar aqui no Quiririm”. Olha, eu nunca vi os dois ficarem tão acabrunhados, pensei que fosse dar um treco nos dois, porque toda a vida dependemos da estrada de ferro, toda vida, e eu principalmente, pra embarcar pra outro quartel. Toda vida, precisava dela. Eu ia no pasto, pegava os dois bois, colocava no carro - olha que coisa deliciosa - , chegava lá na fábrica, colocava os volumes pesados em cima, o empregado ajudava, lá ia com o carro pra levar na estação pra ir embora pra Minas ou pro Rio Grande do Sul. Então pra ver... Isso tudo marcou a minha vida. Quando foi em 52 meu pai resolveu dar baixa lá. Aí, em 53, um irmão dele já faleceu.

TRANSPORTE
A estrada de ferro continuou passando em Taubaté, mas aí já ia complicar, já tinha que pegar caminhão, porque carro de boi já estava começando a ficar perigoso por causa da estrada, antiga estrada. Antiga Rio - São Paulo, tinha que pegar ela. Passava dentro do Quiririm. Tinha comércio em Quiririm. Minha mãe fazia compra de armazém ali. Agora, roupa era em Taubaté. Roupa, sapatos, os móveis.

SEGUNDA GUERRA
Na época da guerra, foi uma calamidade. De 39 até 45 a condução era uma desgraça, era só trem e o trem atrasava muito, porque o carvão foi desviado pros navios que estavam combatendo. Então, a Central era movida por um xisto betuminoso. Até andaram fazendo depois furação, aqui no Vale do Paraíba, tem muito isso aí. Então a máquina não tinha pressão, atrasava demais, duas, três horas. Como eu vinha pra Taubaté com a minha mãe, eu dava graças a Deus de atrasar porque eu ficava no jardim da estação, tinha um parque com muitos bichos ali, nossa, eu ficava ali, vendo os marrecos, os bichos todos.

TRANSPORTE
De Taubaté a Quiririm... tinha um trem chamado misto, porque era um trem de carga e no fundo dele tinha uma miserável classe. Era tanto tranco que a pessoa... Um dia minha mãe estava sentada, aquele banco de frente assim, ela foi parar no colo de outro, do tranco que deu pra sair. Esse era o tal de misto. Tinha o Expressinho também, e esse que vinha do Rio de Janeiro e passava no Quiririm dez pras oito da manhã e chegava no norte, estação Roosevelt, meio-dia, meio-dia e meia, por aí. E à tarde tinha outro. Tinha o rápido, tinha o noturno, tinha trem de luxo, tinha muitos deles. Mas pra nós, para ir pra Taubaté, você tinha que esperar o das dez horas. Dez horas da manhã. Era meia hora. Não tinha outro transporte na época da guerra. Não tinha jeito porque, não tinha... O combustível era racionado, não tinha mais, aí transformaram os carros em gasogênio. Gasogênio, porque era mais econômico. Aí depois começou a melhorar um pouquinho. E os trens atrasavam muito. Uma vez, minha mãe disse: “Ah, Zé” - ela me chamava Zé - “Ah, Zé, o trem está demorando tanto, está muito atrasado, não sabe a hora que vem” - porque ele estava lá pra Cachoeira Paulista ainda. E ela disse assim: “Vamos embora a pé, é tão pertinho”. Ai madonna mia, ai meu Deus do céu, minha Nossa Senhora Era um bom pedaço. Não parece, porque nós saímos por aqui, aí você passava a linha onde é aqui na Independência, depois pegava aquele trecho, depois passava o cemitério, até chegar lá. Criança tudo é festa, mas minha mãe chegou baqueada lá, e com coisa na mão, sacola...

NAMORO
Em 1º de maio de 1949 comecei a namorar a Lenina, e ela já me conhecia há dois anos. Ela morava ali onde hoje é o Bristol, e eu passava com o carro de boi pra... Aí ela começou a me pedir informação, disse: “O que é que ele faz? Que isso, que aquilo. O que é que ele faz?”. Disse que desde de pequenino, eu indo pra escola, o meu apelido é Zé I, ninguém me conhece por José Indiani, Zé Indiani, diminutivo. Então Zé I, Zé I qualquer gato, cachorro sabe quem é. Bom, aí ela perguntava, depois que ela contou pra mim, mas eu tive mais outra namorada antes dela, mas assim, conversa. Agora, 1º de maio de 49 peguei pé firme mesmo, sabe. Ai meu Deus do céu, foi só conversar com ela na praça ali, atrás da igreja que dava ali, que dava uma vista bonita, já foram levar pra minha mãe que eu estava namorando, aí começou o inferninho... Filho único, e ela não queria, queria me levar solteiro pra Itália, pra eu casar com uma italiana lá. Ainda com a idéia... Nossa Senhora Pra resumir o caso, eu não desejo pra ninguém o que eu passei. Eu passei sete anos e dezenove dias triste - namorei sete anos e dezenove dias. Não sei onde Deus mandou aquela coragem de deixar o pai e a mãe e ir pra igreja.

FAMÍLIA
Meu pai e o meu sogro, Bento Alvarenga, jogavam bocha juntos lá no restaurante da Rosana, hoje, ali era um jogo de bocha. José Bento de Alvarenga. Ele teve armazém aqui em Taubaté, no largo do Rosário. Esse doutor Francisco de Paula Toledo era um português ricaço, não sabia o que tinha e ali tinha uma colônia de portugueses, pra baixo da estação tinha também portugueses e do lado do posto tinha um português que era o senhor Francisco Castilho. Então esse homem era casado duas vezes, e ele veio lá de Portugal com três ou quatro filhos, esse doutor Francisco Castilho, e daí depois ele deixou tudo pro filho, o senhor Joaquim Mendes Castilho, e ele em 1904, 1904, achou que ali era um ponto muito bom por causa da estrada de ferro, então ergueu aquele armazém. E ele ficou rico, mais rico ainda, e ficou o nome, ficou sempre Casa Castilho, agora que trocou por Le Bristô. O meu sogro alugou. Eram muitas irmãs, eram dez, fora o que faleceu quando pequenos. Uma mora no Paraná, uma já é falecida, e o resto estão todas vivas, quando se encontram é uma festa.

CASAMENTO
Quando eu namorava, cada vez que saía de casa minha mãe falava: “Já vai atrás, já vai atrás”. Saía de casa era tempestade, chegava lá em cima era trovoada, porque sempre - eu não posso dizer nada, do sogro e da sogra que eu tive, eu desejei eles pra todos. Porque agüentar um cara encostando em casa sete anos, saber se vai casar ou não vai, ela dizia pra Neli, ela tinha apelido de Lila, então dizia: “Lila, não adianta, o Zé I não vai casar com você, o pai e a mãe dele quer que ele case com uma italiana, que vai embora lá pra Itália, não sei o quê”. Mas eu gostava dela e ela também, porque senão a gente não tinha agüentado tudo isso. Eu sei que quando foi um belo dia lá, ela disse assim: “Olha aqui, vamos dar um fim nesse negócio”. “Vamos.” Aí ela mesmo marcou o casamento no dia 20 de maio de 1956, num domingo, às quatro horas da tarde. Eu me lembro até isso, até hoje, foi um parente do pai dela até que fez o casamento, Cícero de Alvarenga, já é falecido, então ele que nos fez o casamento, porque padre não era sempre que ia lá, então quando fazia os casamentos assim, geralmente era domingo à tarde e o meu foi quatro horas, dia 20 de maio de 1956. Ah, eu me despedi deles lá no sobrado, tudo pra sair. Eu era muito mimado, um filho só... Fui lá no pasto, peguei o carro, botei todas as minhas coisas em cima e lá fui eu pra minha casinha onde nós íamos morar. Eu aluguei uma casa, estava tudo certo. Aí depois do casamento, aí a coisa endireitou. Depois endireitou, mas minha mãe pra lá, minha mulher pra cá, não passavam na ponte junto, de jeito nenhum, de jeito nenhum. Como meu pai acabou com a coisa, eu fui plantar, fui plantar verdura. Aí eu casei, tudo bem, bom, aí a coisa começou a engrenar: “Graças a Deus agora vai dar certo a coisa”. Aí nasceu o meu primeiro filho, aí minha mãe, Nossa Senhora, ela carregou o menino pra lá, ela mais vivia lá do que em casa - aí eles já estavam morando na parte alta. A parte alta é onde eu moro e a parte baixa é onde plantava arroz. Bem, daí o menino vivia lá na casa da minha mãe. Nossa, ele vinha bem penteadinho, tomado banho. Mas em casa foi a oração de são Bento, um pra fora e outro pra dentro: foi um filho atrás do outro, foram seis, e aí a Neli ainda perdeu um. Italiano... a família é grande. E meu pai não se conformava, minha mãe não se conformava, falava pro sogro: “Mas meu Deus, o Zé I, outro filho lá, outro filho”, mas graças a Deus tudo trabalhando, eu trabalhando. Depois apareceu um serviço na prefeitura - o meu sogro era subprefeito de Quiririm. Aí - eu sempre gostei dessa coisa de jardinagem, essas coisas - , aí eu entrei, entrei e me aposentei pela prefeitura, me aposentei bem, até, e daí consegui ir pra frente. Depois meu sogro comprou aquela casa onde eu moro, então é da família, eu é quem pago tudo: imposto, água, tudo sou eu. E lá fazem, vai pra 46 anos que eu moro lá, vou fazer 48 de casado.

FAMÍLIA
Em 62, dia 11 de novembro de 62, o meu pai falece. Aí meu menino foi morar definitivamente com minha mãe. Mas depois pediram a casa lá, sabe, aí ela veio morar comigo. Aí começou outra vez a coisa, aí não deu certo outra vez. Porque diz o ditado: quem casa quer casa. Mas aí, meu Deus do céu, trabalhavam juntas, minha mãe não falava com a minha mulher - eu tenho dó de falar isso, mas é verdade.

CIDADES
Taubaté O comércio de Taubaté, o que eu me lembro bem é o seguinte: quando eu estava no quartel - veja só o que eu fazia - , soldado nunca tem dinheiro, eu vinha em casa pra pegar dinheiro do meu pai e depois era cinema, sete dias passava logo, depois ficava com o bolso vazio e vinha buscar. Pra voltar não tinha dinheiro mais, o que a gente fazia? Hoje que eu estou revelando isso na frente de uma câmera porque eu não tenho coragem de fazer isso. A gente saía, juntava lá uns três ou quatro, dava um trocadinho pro guarda, e a gente saía como paisano por baixo e a farda por cima, e vinha pra estação de Lorena. E quando era mais ou menos duas horas da manhã passava o noturno, era um trem de luxo naquela época e tinha um dormitório, uma classe atrás que não abria aquele ziguezague, era fechado ali. Então a gente vinha de graça de trem, subia... Tirava o uniforme, trazia pra minha mãe lavar, daí a gente subia, eu vinha até Taubaté de graça. Aí daqui ia embora por Quiririm, era dois minutos já estava lá. E daí eu tinha esse pessoal da Francano, da fábrica de doce, que no sábado ele fazia entrega de doce lá pro sogro, então ele me dava carona - olha só - , tudo engrenava certinho. As lojas, então eu lembro desses irmãos Alam, Jorge Alam, eu lembro do senhor Jamil, um outro que era turco também ali, tinha a Casa Diamante que amolava as coisas no mercado ali. Tinha a Casa Philadelpho, o seu Eliazinho, que tinha uma beneficiadora de café, na rua do Café, ainda tem o nome até hoje, né? Tinha um armazém também ali no largo, a famosa bica do Bugre... A Casa Taubaté, eu tenho uma recordação. Era dia do aniversário da Neli, eu não sabia o que dar. Passei na esquininha da casa Taubaté ali, depois passou Casa do Pêssego, pegado ao antigo Palace, ali na esquina, eu vi uma baianinha em forma de sino - e eu acredito que seja prata, até porque é muito pesada - , aí eu trouxe a caixinha, a última que tinha, eu comprei e dei pra ela. A lembrança da casa Taubaté. Eles moraram uns tempos aqui em Taubaté, porque o pai dela teve armazém no Pinheirinho, lá no Passa Quatro do Paraíba, e vai embora. Depois de lá ele estava bem, aí ele veio aqui nessa casa em Taubaté. Coitado, o fiado acabou com ele.

CIDADES
Quiririm A gente fazia compra lá no Quiririm mesmo. Roupa vinha pra cá. A criançada estudava tudo lá em Quiririm. Lá tinha uma lojinha, tem até, nesse lugar - ele chama de lojinha - , depois começou os armarinhos - ele chama de armarinho - e ali começou a vender de tudo um pouco, pra evitar o transtorno de a pessoa vir aqui, embora fosse um pouquinho mais caro lá. Quiririm significa assim, é um lugar que não acontece nada, lugar de gente pacata, lugar tranqüilo. Era um fazendão, era um fazendão, apenas uma estrada passava no fundo da minha casa, que ainda passa até hoje, atravessava dentro do Quiririm. Não tinha nada no Quiririm. E ali vinha o café. Eu gosto muito de ler, então eu peguei um livro da prefeitura e estava lá, o café sendo embarcado pra Bragança Paulista, passava por Nazaré Paulista, pra cá, transpondo a Serra do Mar, ali, a Serra da Mantiqueira, descia pelo varjão do Quiririm, atravessava o Quiririm, pegava em Ubatuba, depois destino Ubatuba pegava o café no navio pra ir pro Rio de Janeiro. Então Quiririm tem essa história. Ele passou a ser reconhecido como distrito em 1914, foi aí quando aconteceu aquela coisa do frade, lá. Em 1914 aconteceu um caso triste no Quiririm, foi verídico. Em 1914 Quiririm passa a ser paróquia. A diocese de Taubaté manda pro Quiririm porque sabia que ali eram só italianos, manda um frei. Esse frei era descendente de austríaco - olha só a confusão que foi armada. E acontece que a Itália e a França eram aliadas, e Alemanha com a Áustria também aliada na Primeira Guerra, do 14 ao 18. Então conta, meu pai contava, que o frei, quando Alemanha, Áustria faziam suas vitórias sobre a Itália e a França, ele gozava da italianada dentro da igreja, e quando era ao contrário a italianada fazia o mesmo. Mas o clima foi se agravando de tal maneira que a italianada prometeu matar o frei. E contam os antigos, gente que eu consegui de consciência, que ele desceu correndo o morro pra pegar o trem pra ir embora, que eles queriam matar, mas antes de ele embarcar, pôs uma praga no Quiririm: que o Quiririm havia de ser sempre uma coisa minúscula, nada ia ser pra frente, os descendentes iam morrer de doença contagiosa. E aconteceu, coisa que eu fui prova, coisa que não havia de se ter entendimento: famílias, brigas por posse de terras, tudo isso aconteceu. Agora diz que essa coisa já foi tirada, eu não sei, mas que aconteceu, aconteceu.

INFÂNCIA
Nossa Senhora Aparecida, [eu] ia sempre pra São Paulo. Ia de trem, e pra mim era a coisa mais gostosa que tinha. Ia passear, porque depois eu despachava de caminhão a verdura, eu ia lá no Mercadão central receber lá da japonesada. Mas falar de trem preciso contar alguma coisinha quando ia pra São Paulo com meus pais. Andando no trem você vê, eu dizia assim: “Por que as arvores estão correndo da gente?” - porque o trem, as árvores vão sumindo. Aí chegava em Jacareí eu ficava abismado de ver o pátio dos trilhos. Ali era onde consertava as máquinas antigamente, então tinha uma parada de quinze a vinte minutos. Vinham as pessoas responsáveis e examinavam a máquina, e a máquina era a vapor, então a gente ficava ali. Vinham aquelas pessoas vender as coisas: “Biscoito de Jacareí”, fruta, uma coisa, outra, me lembro direitinho. Meu pai ia contando as estações até chegar em São Paulo: “Agora é Mogi das Cruzes, agora não pára mais, agora vai direto no norte”. Tinha a primeira parada, São Carlos, Bom Jesus, mas essas estaçõezinhas passava direto. A primeira vez que me levaram coincidiu com 7 de setembro. Ali no Brás, quando desembarcamos estava tendo o desfile, eu fiquei, nossa, aquilo parecia que o coração ia explodir de ver aquele pessoal, eu dizia: “Mas como é que tem tudo esse povo tudo vestido igual?”, porque a roupa toda igual, aí eles tiveram que me contar. Depois fomos pro mercado, meu pai queria mostrar o mercado pra mim, pra minha mãe também. Minha mãe ia sempre com ele, e eu toda vida fui doido por banana, eu gosto de banana mesmo, não sei por que eu sempre gostei de banana. Ia passando, assim, perto de uma banca, perto do mercado, isso vem vindo, era uma espanhola bem “troncada”, sabe, bem corada, quando eu vi aquele monte de caixa de banana-ouro, banana-maçã, assim, prata, tudo encostado. Eu corri e já abracei: “nana, nana” - em italiano, quer dizer, “Banana, banana” - , eu abracei, ela veio, coitada da espanhola, ela me deu duas ou três, eu saí contente na mão do meu pai, da minha mãe, todo contente, nunca mais esqueci isso daí. Ah, tinha uns cinco, quatro, cinco anos. Depois fomos pra Santos, passamos aquela bendita daquela coisa, o Guarujá ali tem uma travessia de balsa ali, balsa, barco... Então tem uns porcos, que chama de porcos marinhos que acompanham a embarcação, em torno do barco, da balsa. Tinha uns bancos pra sentar e pra ver, minha mãe me colocou de joelho, não, eu queria ficar de pé ali, pá, ela me esquentou. Mas olha, é tanta coisa. Uma vez, meu pai comprou um chapéu Ramenzoni, melhor chapéu que existia na época, depois dele era o Prada, não existe mais. E o fogão de lenha ardia o dia inteiro lá em casa, um caldeirão de água quente, sempre pra pôr no tanque. Eu peguei, assoprei um pouquinho, fui pôr o chapéu lá dentro. Eu fui demais de danado, eu chamei ele - porque eu não chamava meu pai de pai e nem minha mãe de mãe, era Adélia e Caetano. Então chamei, ela: “Meu Jesus Cristo”, eu corri tanto, eu passei a fábrica, eu passei o pomar e subi pro pomar, fui subindo no pé de laranja. E lá em casa tinha hora certa pra tudo, eu disse: “Ah, acho que eles esqueceram da tragédia, né?”. A gente chegando de mansinho, mas não deu outra: entrei em casa e já pá, pá, pá, apanhei porque fugi, apanhei porque botei o chapéu no forno, apanhei porque cheguei atrasado pro almoço. Não adiantava mais chorar, porque daqui a pouco estava aprontando outra, não adiantava nada. Ia no galinheiro, espatifava a galinhada, amarrava um fio com um pano vermelho e tocava pra fora. A gente era proibido de assistir, ouvir rádio, a gente não tinha televisão por causa da guerra, a gente era vigiado. O meu cunhado, coitado, já faleceu, era técnico de rádio, essas coisas. Ele montou um rádio tão potente que se ouvia as notícias de lá, da Itália, mas eles queriam só ouvir as notícias boas do nosso lado, mas não queria saber que a Itália estava perdendo a guerra, Alemanha estava perdendo a guerra, achavam que ainda... eles tinham aquela esperança. Mas aí, aquela senhora lá, uma italianona, fazia o pão em casa naqueles fornos assim, fazia manteiga em frente de casa, lambuzava aquilo lá. Antes de ela entregar aquilo pra gente, eu estava brincando com os netos dela, assim, numa sala, eu já tinha comido aquilo com os olhos - em casa não faltava nada, meu Deus do céu, tinha de tudo - , ela vinha, só falava italiano com a gente: “Toma esse pedaço”. Eu comia aquilo, e brincando com a criançada. Ela, coitada da senhora, via que já tinha acabado o pão, ela vinha com mais pra trazer pra gente, está pensando que eu pegava? Primeiro eu olhava pra minha mãe, conforme a fisionomia que a minha mãe fazia, eu falava: “Não, não quero mais”, de jeito nenhum. Agora, se ela desse um sinal ou um riso lá, podia pegar outro. De jeito nenhum, nunca aprendi a ser “entrão” assim.

VALE DO PARAÍBA
Conheci outras cidades aqui do Vale, ia de trem. E depois começou a melhorar, tinha ônibus. Era por causa das orquídeas também, aí já comecei a colecionar orquídeas, fazer exposição de orquídeas, ia sempre por um lado, por outro, ia sempre. Ia encontrar com os amigos, mas isso bem mais agora, mais agora, mas naquela época lá já era mais difícil. Depois começou uma empresa de ônibus, até o rapaz ainda é vivo, mora em Lorena, o Malerba, empresa Malerba. Mas na época mesmo da guerra, era assim: passava na estação tinha que sujeitar o trem, porque não tinha outra condução, não tinha de jeito maneira, era só isso daí. Agora, depois da guerra, que aí depois começou a normalizar, aí o pessoal da roça lá vinha e olhava, via, se o trem tivesse na hora ficava no trem, senão eles subiam de ônibus.

TRANSPORTE
Quando fez a Dutra, eu estava no quartel. Ela começou em 48, já começou o traçado. Em 50, 51 tinha uma parte bem pavimentada. E nessa época também a estrada de ferro deixou de passar no Quiririm. Eu já passava aqui em Pindamonhangaba, o trem ia devagarinho, as pedras até iam rodando assim, sabe, porque ainda não estava firme no leito da Central. Eles mudaram o trajeto da Central porque a Central sempre deu prejuízo. Na época da guerra não tinha mais carvão, era lenha. Aí foi a degradação - isso é que corta o coração - depenaram a Serra da Mantiqueira, como é que diz, Campos do Jordão, aterraram defronte a Caçapava, desceram com tudo, cortaram tudo. Vinha de carro de boi, vinha trinta carros de boi por dia empilhando aquela lenha tudo no pátio da estação, aí o trem era movido a lenha, então acabaram com a natureza, acabaram. E era assim: chegavam mil metros de lenha, diziam que eram dois, então a Central foi pro brejo, não teve mais... O pessoal roubava demais, infelizmente foi o que aconteceu.

CIDADES
Quiririm Em Quiririm tinha a tradicional festa de santo Antônio e de Nossa Senhora, porque a festa de santo Antônio era uma inveja aqui no Vale do Paraíba: vinha gente de todo lugar, porque era uma festa... Eram quinze dias, porque lá eles colocaram assim: santo Antônio, 13 de junho, porque veio muita gente de Pádua pro Quiririm, então santo Antônio de Pádua, e veio gente de Cremona e Calvatoni, que era Nossa Senhora Conceição, Imaculada Conceição, então puseram lá. E um dia um padre lá do Quiririm perguntou: “Seu Zé I, por que tem essa imagem de Nossa Senhora aqui? Diz que foi os frades trapistas que puseram?”. Eu disse: “Não, não foi. Não foi porque os frades trapistas chegaram aqui na fazenda do Birizau em 1904, e os italianos já estavam assentados desde de 1890 lá no Quiririm, e o lugar foi bento em 1895”. Então eles tinham uma vantagem de quase dez anos. Os frades contribuíram com os italianos, foi a semente de arroz melhorada, porque os italianos plantavam arroz que era nativo, um arroz que quando descasca a mulherada não gosta muito de comprar. Porque tem arroz vermelho dentro, então aquele é o arroz nativo. Os frades sabiam que tinha uma colônia italiana e eles vieram oferecer a semente, e aí melhoraram. É por isso que tem essas festas. Agora, a festa de santo Antônio, eu me lembro que quando acabava a festa no domingo tinha um baile no salão do Quiririm. Tem uma sede lá e a minha mãe adorou toda vida o bendito baile. Eu tinha uns três anos, mais ou menos, e tinha o pessoal do Valério, já se foram todos... Mas eu tinha uns dois anos, três anos, dois anos e meio, três anos, eu me lembro disso aí. Eu me esperneava no colo da italianada lá, e minha mãe dançando. Mas o baile começava quinze pras oito, oito horas, no máximo onze e meia, meia-noite terminava. Agora, hoje não: começa meia-noite e vai até seis, sete horas da manhã. Então meu pai ia jogar bocha, baralho e minha mãe ia no baile. Depois desciam os dois juntos. Isso era infalível. Mas fora a festa, todo sábado e domingo tinha o bailinho da italianada, lá. E quem ia tocar lá era o famoso Quintino Brotero de Assis e Tremembé, já falecido, com a bandinha dele. Esse era infalível, era ele quem tocava.

FAMÍLIA
Depois minha mãe se familiarizou aqui: era samba, era qualquer coisa lá, era valsa e todas essas coisas, mas era isso aí. E tem outra coisa, com esse negócio de ela ir lá e aqui, quando minha mãe chegou da Itália, tinha uma bandinha, uma minibandinha no Quiririm, tinha uns quatro, cinco, seis, sempre tem nos lugarzinhos pequenos assim de roça, sempre tem. Aí sabiam que meu pai ia chegar com a minha mãe, foram na estação esperar e foram tocar até no sobrado. Lá teve um baile quando eles chegaram, chegaram no Expressinho das nove e meia da noite de São Paulo, porque vieram desembarcaram em Santos, vieram pela antiga Rio - São Paulo e vieram embora. Ela voltou pra Itália em 31 de julho de 79. Foi uma sobrinha minha do Paraná, sobrinha da Neli, por parte da Neli, e ela disse assim: “Tio, o senhor não quer me dar o endereço lá de Calvatoni, onde mora a vó Adélia”. Não era nada dela, mas chamava vó. Passei pra ela por telefone. Aí quando ela chegou em Gênova, ela ligou lá pra minha mãe. A minha mãe quase deu até um troço nela, as minhas tias elas falaram que ela ficou tão contente que ia alguém do Brasil lá visitá-la, aí disse assim: “Oi, dona Adélia como vai a senhora?”. “Pode vir”. Ficou um mês lá, passeou por toda redondeza, ficou hospedada com as minhas tias, chegou na hora de vir embora ela estava com um pé no Brasil e outro na Itália. No ano que ela foi embora casaram-se dois filhos meus, e já tinha os netos, eu já tinha os meus netos, os filhos deles. Ela disse: “Dona Adélia, e agora está chegando o dia de eu ir embora. Como é, a senhora vai ficar ou quer voltar pro Brasil pra conhecer os netos?”, pondo fogo, pondo brasa na fogueira. Mas, olha, ela arrumou o passaporte dela, pegou o avião e veio embora. Aí alugamos um microônibus, lá foi a turma do Quiririm. Eu tenho a foto. Fomos lá em Congonhas recebê-la. Ela veio embora e não voltou mais. Ela foi viúva, depois, porque meu pai faleceu em 62, ela voltou em 79. Então, eu disse: “Puxa vida, quem sabe agora vai dar certo aqui em casa”. Não adiantou nada: a coisa foi bem um mês, dois, depois começou a entortar tudo de novo. Foi até o dia em que ela faleceu. Ela viveu quase 93 anos, ela faleceu dia 5 de março de 95. E o meu sogro também faleceu no mesmo ano, só que ele tinha feito 93 e ia pra 94. Tenho cinco netos e um casal de bisnetos. Nossa Senhora, isso aí pra mim... Num domingo, não se ajuntar a turma, não é domingo pra mim, não é. A filha, de vez em quando ela liga: “Pai, cadê a mãe?”, eu digo: “A mãe está aqui”. Aí ela fica bordando lá o dia inteiro, gosta de bordar, minha mulher gosta de bordar, gosta de fazer as coisas. Vai uma filha: “Vai mãe, faz uma coisinha”, ela fica lá, ela gosta. Então daí, se não se reúne, pra mim é uma bordoada. Então: “Pai, não vai dar pra ir porque hoje a sogra quer que vamos comer com ela”, lá na roça, ela tem a sogra viva, o sogro já faleceu. “Ainda bem, um de menos já pra vim, então vai diminuir uma cadeira e um prato na mesa, né?” Mas vem o resto, vêm os outros, aí ajunta. Quando ajunta tudo tem uns dezoito, vinte, 21, 22, e pra mim é uma alegria, gaste o quanto gastar, eu quero a turma.

AVALIAÇÃO
Trajetória de Vida Tirando o que eu passei, essas “coisaradas”, mas mesmo assim, graças a Deus eu tenho saúde, eu fico o dia inteiro no sobrado, eu vou lá na roça, eu vou no meu orquidário, desço aquele morrinho não sei quantas vezes por dia, lá. Olha, graças a Deus, por enquanto está tudo bem, 13 de janeiro, se Deus quiser, eu intero 73. Vamos fazer um presépio, todo ano fazemos um presépio, isso é costume da gente. Eu criei meus filhos na praça, e sempre foi ali, eu criei meio rígido. Porque bastava dar uma assobiada, já procurava onde estava e já pra casa. Então, naquele tempo podia fazer o que quisesse ali, a praça ali sempre foi uma praça mesmo. Uma maravilha.

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